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BATOM, CAMISINHA E... MÁSCARA?

A pandemia afetou a rotina de todas as profissões. Para quem trabalha com sexo, no entanto, o golpe foi mais embaixo.

Um beijo. Um abraço. Uma carícia. Da noite para o dia, palavras que remetiam à proximidade tiveram de ser afastadas de nossas vidas. Mas tudo bem, afinal era só por um mês. Talvez dois. Três? Com certeza de seis não passa. E o ano virou. O auxílio emergencial chegou, acabou e voltou de novo. Trabalhos foram perdidos, outros reinventados. Até mesmo a profissão mais antiga do mundo teve que ser repensada. E sobreviver da intimidade quando a ordem é a distância não é para qualquer um.

A Hub Jornalismo ESPM conversou com seis personagens que compartilharam dilemas e soluções encontrados pelo mercado da prostituição durante a pandemia. Seja nas ruas, nas boates ou na internet, cada um representa as diferentes faces de um mesmo mundo. E, apesar das realidades distintas, todos dividem uma certeza reconfortante. Não importa a doença, a guerra ou a situação política. Uma hora ou outra, o desejo fala mais alto.

Não foram somente os profissionais da saúde que ficaram expostos aos riscos da Covid durante a pandemia. “Os médicos são a linha de frente. A gente, agora, é linha de costas e de lado”, diz Maria Elias, 43 anos, prostituta há 25 anos. As garotas de programa, ou profissionais do sexo, também enfrentaram um grande desafio. Algumas, inclusive, tiveram de se adaptar a uma nova realidade. “Em tempos de pandemia existem dois caminhos, e eram esses dois caminhos que eu não estava sabendo diferenciar”, conta Dani Buenno, criadora de conteúdo sensual na internet. 

No entanto, nem todas se adaptaram. “Começou a criar um complexo na minha cabeça onde eu não conseguia mais me olhar no espelho, levantar da cama. Eu não conseguia falar com a minha família, tinha vergonha de tirar foto”, relembra Júlia Flores. O nome fictício é para preservar a identidade da fonte, que se espantou com o lado obscuro das plataformas online para compra e venda de imagens pornográficas, como o Onlyfans. Embora o mundo virtual proporcione mais segurança física, a saúde mental fica tão vulnerável frente às webcams quanto nas esquinas. “‘Se você quiser voltar a ver as pessoas que você ama, me faça gozar’. E aí, o que que você diz nessa hora?”, lembra Cléo Soares, de 49 anos, depois de ser ameaçada e estuprada durante um programa.

DE VER O PESO AO PREÇO

“É uma vida que você precisa de tanta dedicação que até para ser puta tem que ter perfil”. A frase vem de uma mulher de 43 anos, e que desde os 19 se dedica ao ramo da prostituição. Foi trabalhando na feira do mercado Ver-o-Peso em Belém do Pará, considerada a maior feira da américa latina, que Maria Elias recebeu um convite. Ganhar um dinheiro extra sendo dançarina numa boate. O pouco dinheiro e a necessidade de criar os dois filhos pequenos fez com que Maria percebesse que o perfil dela era para outra profissão. “Assim, acabei parando de fazer dança no palco, no pole dance e passei a fazer programa por dinheiro”.

\Reprodução: Agência Belém
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Outra motivação foi a curiosidade. Qualquer conversa envolvendo garotas de programa chama atenção, junta gente, gera debates. Muitas narram episódios cômicos, quase sempre envolvendo um amigo ou amiga. Mas quando salta a pergunta “como é ser puta?”, o clima na roda muda. Histórias dão lugar a opiniões. Risadas saem, julgamentos entram. Para a maioria das pessoas, falar daquilo que nunca viveu é fácil. Maria, no entanto, não vai com as outras. “Eu tinha vontade de conhecer um lado que sempre ouvi as pessoas marginalizando, dizendo que era ruim, uma vida fácil... não é uma vida fácil”.
Segundo ela, seu trabalho é um serviço não reconhecido e, muito menos, remunerado como deveria ser. Contudo, o baixo valor dos programas está longe de ser o principal problema. É comum essas mulheres se depararem com clientes que não querem pagar pelo serviço. Agressão física e humilhação já são de praxe. Na balança dos prejuízos, Maria ainda faz questão de adicionar a marginalização que passou a sofrer depois que entrou para esse mercado. 
Tudo isso deixa marcas eternas. Algumas são esquecidas com o tempo, como uma tatuagem que migra da testa para as costas. Já outras não podem ser esquecidas jamais, por uma questão de vida ou morte. Maria tem uma dessas. Incurável, porém tratável, minúscula e gigante, é uma cicatriz que corre em suas veias há 19 anos.

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COVID VS. HIV

Segundo dados do Ministério da Saúde divulgados em 2020, cerca de 920 mil pessoas vivem com HIV no Brasil. Maria Elias é uma delas. Herança da profissão, a paraense conta que vive com a doença desde os 24 anos. Para ela, o HIV é uma companhia indesejada, mas que já não assusta. Prevenção, tratamento e cuidados constantes já fazem parte da rotina. Mas como fica essa rotina quando outro vírus entra em cena?

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Um fato interessante abordado pela prostituta é a pouca divulgação em veículos de comunicação tradicionais quanto à relação entre prostituição e AIDS. “É interessante porque, hoje, quando procuram alguém pra falar sobre HIV e trabalho sexual, poucas pessoas trazem esse debate a tona. Geralmente é abordado somente a AIDS ou a prostituição, raramente vemos os dois juntos”. Quando a pandemia é inserida nessa equação, as exceções ficam ainda mais difíceis de encontrar.

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Um desses casos raros é o doutor Eduardo Sprinz. Chefe de Infectologia do Hospital de Clínicas de Porto Alegre, ele foi pioneiro dos estudos sobre o HIV no Rio Grande do Sul no final do século XX, e relata que vê muitas semelhanças entre o coronavírus e a AIDS quando a discussão envolve garotas de programa. “A recomendação para profissionais do sexo devem ser as mesmas para todo mundo”. 
O médico ressalta que, ao contrário do que muitos pensam, o trabalho exercido por elas não é um combustível para a pandemia. Por estarem na rua, inclusive, as prostitutas estão muito mais vulneráveis. “São as pessoas que viajam, que tem mobilidade e um monte de interrelações que espalham muito mais a infecção do que as profissionais do sexo, que ficam no seu ponto esperando um cliente chegar.”
Entretanto, mesmo com esses ‘confortos’ e já estando vacinada contra a COVID-19, Maria Elias não quis nem saber. Depois de perder 12 companheiras de trabalho para o coronavírus, ela e as colegas repensaram seu modo de atender. E tiveram que se virar (literalmente) para satisfazer a clientela.

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A gente logo avisa: “Quer fazer um programa? O valor é esse, mas só fazemos de costas”

Muito tem se falado, e com razão, daqueles que estão na linha de frente do combate à pandemia. Médicos, enfermeiros e profissionais da saúde em geral são constantemente exaltados, aplaudidos de janelas e sacadas. Segundo Maria, as garotas de programa também fazem parte do exército anti-COVID. Seu batalhão, no entanto, enfrenta a guerra por outros ângulos: “a gente, agora, é linha de costas e de lado”.
Para evitar ao máximo o contato físico durante os programas, a paraense conta que baniu beijos e abraços. Além disso, qualquer interação rosto com rosto foi proibida. “Também foi preciso redobrar a questão dos banhos. O Pará é muito quente, então a gente tem o hábito de chegar no cabaré com uma roupa e trocar pra outra quando vamos pro salão”, conta. Dentro da bolsa, camisinha, lubrificante, máscara e álcool em gel. Dentro da carteira, quase nada.
Um item que Maria Elias poderia ter incluído é tripé para apoiar o smartphone utilizado para gravação de vídeos – uma prática que cresceu muito entre as garotas de programa durante a pandemia, como mostraremos adiante. Ao ser questionada sobre o ingresso para o mercado digital, a garota de programa de 43 anos disse que até vende conteúdo, porém não ganha muito por não ser mais garota. “Pros programas virtuais, a questão da venda de vídeos e de fotos, eu já não tenho uma renda tão grande. Uma colega que saiu daqui, de vinte e cinco anos, é capa da Playboy. Ela vende muito, ela arrebenta”.

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UNIÃO, COISA DE PUTA

Os cuidados excessivos, e sensatos, que Maria implementou em sua rotina de trabalho sem dúvida impactam em sua situação financeira. Não é todo cliente que vai querer pagar por um sexo “limitado”. É nesses momentos em que até as vaidades mais simples são atrasadas, como a ida à manicure ou o curso de francês, que a saúde dessas profissionais, tanto mental quanto física, é colocada à prova. E o pior, sem quase ninguém para dar amparo. “Independente do trabalho sexual, nós também somos mulheres, somos mães. Quando a pandemia chegou, nos perguntamos: quem vai nos ajudar?”

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A resposta veio das próprias prostitutas. Presidente do Coletivo Coisa de Puta +, Maria Elias ajuda garotas de programa de Belém, no Pará, a lidarem com o HIV. Recentemente, o apoio se estendeu ao Coronavírus. “Temos de incentivar a  colega que é trabalhadora sexual a não desistir da adesão, e mostrar de que maneira estamos vivendo para que as pessoas não se assustem”, afirma Maria. Para ela, um dos principais objetivos é unificar as trabalhadoras sexuais para que, no futuro, a relação entre pandemia e prostituição não seja tão difícil.
Apesar dos problemas, dos riscos e da desvalorização, Maria não esconde o orgulho de ser o que é. Durante toda a entrevista, manteve o sorriso e o bom humor falando de tópicos sensíveis. “Gosto de falar pras minhas amigas: vamos tirar fotos com as máscaras e fazer um registro de tudo. Quando acabar, a gente vai lembrar que passou por tudo isso. Isso também é história dentro da história”. E a história do universo marginalizado é repleta de protagonistas.

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RAINHA DO SUBMUNDO

Sombra rosa, blusa vermelha em contraste com a parede verde clara, sinal que cai e volta. “Fica quieto que estou dando entrevista”, diz a alguém que anda pela casa. Ele obedece, ela ri para o computador. Esses foram alguns dos momentos em que Cleo Soares, mulher transexual, ativista e prostituta de rua, mostrou a atitude de uma rainha do submundo perante os obstáculos da vida. Para ela, que sonha em ser atriz, o coronavírus não passa de mais uma pedra no caminho.

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Residente na cidade de Sapiranga, região metropolitana do Rio Grande do Sul, a personagem conta que foi a partir da dificuldade em encontrar vagas de emprego para pessoas trans que decidiu ingressar no ramo da prostituição. A situação nunca foi fácil e, com a pandemia, complicou mais ainda. Foi uma decisão difícil. “Eu trabalho hoje para ter o que comer à noite. É uma escolha” . 
E uma escolha que veio tarde. Foi em 2016, aos 44 anos, que Cleo se inseriu no mercado sexual. Apesar dos tabus acerca da transexualidade, ela afirma que o maior preconceito que sofre é, sem dúvida, em relação à idade. De fato, em um mercado onde a juventude é critério de desempate, um ano a mais pesa no bolso. “É realmente muito competitivo, para a minha idade estou em desvantagem”, lembra a profissional do sexo, hoje com 49 anos.
 
“Agora parece que o assunto [transexualidade] virou moda, não sei se por um interesse, uma necessidade ou justiça social”.
 
Porém, vale ressaltar que, apesar dos problemas, Cleo não se vê como vítima de sua realidade. Aliás, longe disso. “Se eu pensar que sou uma coitada, é isso que eu vou ser”, conta ela. “Logo, eu procuro não me alimentar desses medos, desses temores, não deixo isso me afetar em absoluto”.
De repente, ela trava no meio da resposta. Não por não saber o que dizer, mas por falha da internet. A conversa é interrompida por quase 20 minutos. Ao retornar, Cleo mal tem tempo de voltar ao raciocínio quando vem uma ligação. “Oi, poderia me ligar depois? Tô no meio de uma entrevista”, pede a garota de programa, sorrindo enquanto olha para a câmera do laptop. Assim que desliga, ela conta que não deu para pagar a internet esse mês, mas conseguiu um prazo com o operador. “Ele ligou pra ver se tava tudo certo. Ainda bem que a gente conversa com as pessoas e resolve, né?”
É assim que Cleo enfrenta a vida. Se levar tudo muito a sério, não sobrevive. Vivendo como transexual há 21 anos, ela entende isso melhor do que ninguém. 

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OS NOVOS OLHARES DE CLEO

Enquanto homem cis¹, havia um mundo de oportunidades. Em sua encarnação anterior, a prostituta lembra que trabalhava em uma fábrica de calçados de sua cidade, buscando finalizar sua educação e conseguir melhores oportunidades de emprego.

Após ter feito a transição de gênero, entretanto, tudo mudou. As portas do mercado de trabalho se fecharam, mas seus olhos se abriram para um universo único e diverso. Nesse novo rumo, Cléo deixou a fabricação de sapatos para trás e subiu de vez no salto.

A expectativa média de vida para uma pessoa transexual no Brasil é de 35 anos, segundo Associação Nacional de Travestis e Transexuais (ANTRA). Cléo sentiu essa estatística na pele. Após ser agredida por policiais, tendo seus dentes e nariz quebrados, além das inúmeras cicatrizes, ela se questionou: “se eu estava apanhando do próprio Estado, que deveria me proteger, o que eu deveria fazer?"

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CALÇADA DA FAMA

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Apesar das dificuldades enfrentadas, Cléo sempre mantém seu otimismo frente às situações adversas. Bacharel em Design e mestra em diversidade e práticas inclusivas nas organizações, a entrevistada fala do seu sonho em trabalhar com cinema. Inclusive, durante a conversa, recebe outro telefonema, dessa vez de sua professora, que confirma a presença dela em um curta-metragem.

 

“Pra fugir um pouco dessa realidade hostil, a gente [prostitutas] imagina que os pontos, que as esquinas são cenários, são estúdios, são palcos onde somos  admiradas. E, de certa forma, a gente é, né?”

 

Embora não tenha nenhuma vergonha do que faça, Cléo não nega seu desejo de sair da prostituição. O trabalho com a ONG e a defesa da comunidade transexual, porém, vão perdurar por muitos anos. Pelo menos, assim ela espera. “Eu quero conquistar o máximo de espaços possíveis, seja nas telas de cinema, como atriz, como diretora, como fotógrafa, como diretora de arte, como designer.” Enquanto a “aposentadoria” não chega, as ruas seguem sendo seu palco, e a sobrevivência, sua missão. 

 

“Quando a gente entra num carro, muitas de nós não temos certeza de que vamos voltar. Mas a gente precisa. Por um instinto de sobrevivência, a gente tem que ir. ”

 

Ao ser questionada sobre o ingresso para o mercado digital e a produção de conteúdo erótico, a personagem rapidamente descarta essa possibilidade. “Costumo dizer que minhas vaidades são mais intelectuais, não são tão estéticas. Não tenho interesse nessa exposição do meu corpo nu ou do meu sexo”. Mas Cléo é fora da curva, em todos os sentidos. E a curva do online não para de crescer.


 

¹ Homem cisgênero: pessoa que se identifica, em todos os aspectos, com o gênero que nasceu. Ou seja, possui o órgão sexual masculino e se reconhece como homem.

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É a partir desse questionamento que surge, em 2009, a ONG “Outros Olhares”. Diretora da instituição até hoje, Cleo conta que o objetivo principal é ajudar a comunidade transexual na manutenção de seus direitos, estando sempre alerta para abusos de autoridades. “Percebi que deveria me organizar com as minhas colegas, meus amigos e amigas, para criar a Outros Olhares”. A personagem afirma que a ONG não tem sede devido aos recursos escassos, e funciona em sua casa.
E os obstáculos não acabam por aí. Além do preconceito no mercado de trabalho, a mesma relata preconceitos dentro do mercado sexual.  “Quando a gente sai, quando a gente entra num carro, muitas de nós não temos certeza de que vamos voltar. Mas a gente precisa. Por um instinto de sobrevivência, a gente tem que ir “, afirma. Sendo Cleo, contudo, ela não desanima.

ADEUS CAFETÕES, OLÁ CEOS

O paraíso é logo ali. Para alguns, essa frase remete a praias com areias brancas e mar azul-celeste, distantes de tudo e de todos. Já para outros, consiste mais em um estado de espírito do que em um lugar físico. É a recompensa após uma vida de sacrifícios, um limbo tranquilo onde reinam a paz e a harmonia. Agora para Pedro Albuquerque, jovem empreendedor de Florianópolis, o paraíso é literalmente logo aqui, na aba ao lado, que leva ao Paradise Girls – site de anúncios de acompanhantes de luxo e garotas de programa.

 

Fundador e CEO da plataforma, Pedro é um exemplo de que todo empresário precisa ser, antes de tudo, consumidor do negócio que vende. Formado em engenharia pela Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC), ele conta que pôde conhecer a fundo o mercado de anúncios de acompanhantes quando prestava consultoria para uma multinacional. O salário era bom. A forma como gastava com as garotas de programa, melhor ainda.

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No entanto, Pedro logo notou problemas e, consequentemente, oportunidades. “Durante todo o período que eu os acompanhei, os sites estavam estagnados em termos de qualquer visão possível, fosse de marketing, de comercial ou de produto. E isso me despertou a vontade de empreender”, relembra. 
 
Empreender, essa é a palavra-chave. Como revelou antes da conversa, uma das principais preocupações do CEO é ser confundido com uma espécie de cafetão digital devido aos preconceitos que rondam qualquer projeto envolvendo sexo e dinheiro. “O Paradise Girls é um site de anúncios, nós não agenciamos ninguém”, ressaltou. 

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ELAS SE EXPÕEM, EU ME EXPONHO

Ao ser questionado sobre a legalidade do seu negócio, Pedro nem hesitou. “Desde que me dou por gente, os jornais estavam anunciando garotas em classificados. Por isso, me sinto extremamente seguro de que não há nenhum problema em ter uma plataforma de anúncios”. Mas isso não é garantia de um sono tranquilo.

 

Um dos maiores dilemas do CEO foi a exposição nas redes sociais. Ele conta que nunca teve vergonha de estampar o rosto sorridente e engravatado na página inicial do site, inclusive considerou fundamental para a profissionalização do negócio. Contudo, quando precisou ir para o YouTube instruir potenciais usuários do Paradise sobre o mercado de acompanhantes de luxo, Pedro sentiu o baque. “Foi um processo doloroso, ainda estou pagando o preço por isso. Eu não me sinto muito orgulhoso pelo tipo de apelo que tenho que fazer, mas traz os números que a gente precisa”.

 

Tanto quanto a imagem pessoal, ele reitera seu apreço pela integridade e segurança das garotas, que considera uma das vantagens do digital em relação às esquinas. “O problema das ruas é, principalmente, a falta de segurança. Além disso, em muitos locais, elas têm que pagar ao dono do ponto para poder ficar ali”. Já no site, a história é outra. Cabe as anunciantes produzir os próprios materiais, atrair clientes e marcar os encontros. Na visão do jovem empresário, é “o único trabalho que elas conseguem desempenhar de forma independente. Essa é a grande beleza do Paradise”. E não é à toa que vem crescendo.

QUANDO O NEGÓCIO É BOM...

Segundo Pedro, desde março de 2020 houve um aumento próximo a 60% no número de anúncios do Paradise Girls. A pandemia é um dos principais fatores por trás desse dado, já que impulsionou a migração das mulheres para o digital em função da saúde e da segurança. Ao perceber o fenômeno, o CEO viu a necessidade de ir além dos anúncios e criar uma modalidade para o atendimento online, com um sistema de vídeo chamadas de 15 minutos entre o cliente e a anunciada. Para alguns, no entanto, a proposta é arriscada.

 

O empreendedor lembra que muitos clientes acabam ficando para trás da tecnologia, seja por conta da idade ou do medo. Grande parte dos consumidores da prostituição têm 50 anos para cima e acham perigoso contratar uma acompanhante pela internet, onde os golpes aumentam a cada dia. “Além disso, vários são casados”, lembra o empresário, o que eleva ainda mais o risco. Mas e pagar só para assistir? Afinal, olhar não arranca pedaço.

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PRIVACIDADE SOCIAL

A transição para o digital é a marca de nossa época. O mercado do sexo, assim como qualquer outro, está em processo de modernização: os cafetões saem de cena e aparecem os empreendedores. A prostituição não tem mais a mesma cara. O novo normal é real. O toque foi substituído pelo screenshot. O beijo, pelo clique. Assim surgiu o Privacy, plataforma de conteúdo digital que aproxima criadores de conteúdos com seus clientes. 

 

Sabe aquela história de que nada se cria e tudo se copia? Foi assim que Fábio Monteiro explicou como a ideia virou realidade. Seguindo o modelo da rede social Onlyfans, o empresário agarrou uma oportunidade antes mesmo de saber como a pandemia afetaria positivamente seu empreendimento. "Eu comecei a ver que tava surgindo muito burburinho do Only Fans, no início de 2019, ainda era bem pequena e eu vi que tinha uma boa oportunidade aí."

 

A plataforma funciona com o propósito de unir criadores de conteúdo sexual com espectadores. Um certo tipo de voyeurismo que passa a ser remunerado, no crédito ou boleto. O modelo alimenta seu canal na plataforma com um conteúdo erótico. Fotos e vídeos, às vezes, personalizados, alimentam a fantasia de homens e mulheres de todo o mundo. Se a pandemia forçou a ficar em casa, as portas trancadas não foram o suficiente para barrar os profissionais do sexo. O cliente paga, o cliente vê.

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O serviço sob demanda funciona como uma assinatura, tanto no Privacy como no seu precursor, o Only Fans. O potencial cliente entra na plataforma, cria o seu cadastro e tem acesso a um amplo catálogo de modelos: homens e mulheres, onde a única exigência é que sejam maiores de idade. E, assim, inicia o processo até que o interessado encontre a sua mais nova fantasia.
 
Os valores variam: "No Privacy, uma criadora de conteúdo pode cobrar R$50, R$60, R$70 a assinatura, mais conteúdos avulsos" afirma o CEO. O diferencial de possibilitar o pagamento por boleto aproximou do público brasileiro que, segundo Fábio, muitas vezes não tem cartão de crédito internacional. Política que, inclusive, beneficia os próprios criadores de conteúdo: "No Onlyfans você paga só em dólar. Só aceita dólar, ou seja, o cliente acaba pagando mais caro, porque é em dólar, mais o IOF, e o criador de conteúdo acaba recebendo menos".
 
A segurança é outra prioridade na plataforma. Os golpes estão cada vez mais recorrentes na vida digital, e Fábio deixa claro: "é uma das coisas que nos diferencia, se a gente não tiver esse alento a gente vai ser só mais um no mercado." Um diferencial da Privacy é o foco na autenticidade: o CPF dos criadores de conteúdo é um requisito básico. Afinal, não é qualquer profissão que sofre com a utilização do control c seguido do control v.
 
Ao ser questionado sobre como enxerga o futuro pós-pandemia, Fábio é otimista. Para ele, o mercado continuará a crescer com a mesma força. Ou até mais. A realidade já está posta. As redes sociais continuam moldando o nosso comportamento: "Se eu quiser mandar uma mensagem pro Obama, pra quem quer que seja, eu posso mandar diretamente pelo Instagram, então dá uma falsa sensação de contato, de proximidade com a pessoa que eu conheço".

Essa é a grande sacada do negócio. Segundo o empresário, todos conhecem alguém bonito e que desperta o interesse nas redes sociais. A chance de conhecer essa pessoa na vida real? Minúscula. Mas arrastando pra cima, passando o cartão e dando aquele click, a magia da ilusão acontece

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DO ONLYFANS A TERAPIA

“Os sacrifícios dessa escolha são pesados, e a gente carrega eles pra vida inteira”, relembra Dani Buenno, que ingressou no ramo da prostituição aos 29 anos, na cidade de Pelotas. Professora da rede pública no interior do estado, ela entrou nesse mercado por dificuldades financeiras. E demorou para se encontrar.

 
Em um momento de desespero, Dani conta que caiu de paraquedas em uma boate. Ela sabia o que acontecia ali. Mais que isso: ela sabia o que precisava fazer ali. Nada disso foi suficiente para fazer com que ela se sentisse bem naquele local. Dani começava a ver que se encaixar naquele sistema seria impossível. “Por mais que eu estivesse em um ambiente de vulgaridade, achava tudo aquilo muito vulgar”, conta. Ela passou a atender apenas clientes já conhecidos ou indicados, tendo como principal foco a segurança pessoal. Só que para dar sequência nessa história a gente precisa acrescentar um elemento muito importante: a pandemia. A jovem passaria a ter uma nova preocupação.

 
O medo da Covid-19 e a preocupação em contaminar a família fizeram com que ela diminuísse os atendimentos presenciais gradativamente, até chegar ao ponto de não fazer mais nenhum. Foi aí que ela descobriu um caminho atrativo, mas muito perigoso. “Ultimamente, é como se eu estivesse em uma profissão nova”, a frase dela traz junto um sentimento de confiança, digno de quem descobriu um novo mercado de trabalho.

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De pijama e com uma expressão suave, Dani explicou que tinha acabado de gravar conteúdo para suas redes e ressaltou o empenho necessário para construir um perfil sólido nas plataformas. “Não é só largar o celular num lugar, ficar se gravando e postar”, lembrou. “Tem toda uma organização, canais, pessoas de TI que prestam um serviço pra gente”.

Dani mora em São Paulo e apesar do trabalho diário e constante, a esposa e mãe de família fez questão de enaltecer os benefícios do “home office”. Quando a jovem falou que tinha uma nova profissão ela não estava brincando. Daqui pra frente vai ser difícil voltar aos programas offline. Para ela, o atendimento virtual é muito melhor por garantir mais segurança, além de proporcionar uma rotina mais leve. “Em um churrasco entre vizinhos, antes eu não podia falar o que fazia da vida. Hoje, posso simplesmente dizer que trabalho com rede social, com produção de conteúdo”. Mesmo faturando menos, as novas possibilidades e a qualidade de vida são um grande atrativo. 

Essa atração toda logo dá espaço para o medo e o perigo. Se expor em redes sociais e sites pode ser um caminho sem volta. A memória da internet é infinita, ainda mais quando se trata de conteúdos eróticos. A exposição irreverente é um risco, não uma diversão, e é cada vez mais importante lembrar jovens – principalmente menores de idade – sobre esse fato. “Têm meninas que querem grana pra comprar um óculos da moda ou uma bolsa de marca, aí ficam vendendo pack. Será que elas realmente precisam fazer isso?”, questiona Dani. Apesar de trabalhar na área, ela afirma ser contra a romantização dessa atividade. “Nós sabemos o quanto isso expõe e sacrifica algumas coisas na vida da pessoa”. 

 

“Nossa você parece muito com a minha filha, por isso eu assinei”

Essa frase foi só o início do sacrifício na vida da jovem de 22 anos. Por questões de segurança não vamos identificá-la e nessa reportagem ela será Júlia Flores. O dinheiro fácil e rápido atraíram ela para o mercado digital de conteúdo sensual. Segundo a professora de inglês, um faturamento que poderia chegar até R$ 3 mil com a venda de conteúdos sensuais na plataforma Onlyfans. Júlia levou pouco tempo para entender que o custo disso tudo era alto demais. “Eu postava, deitava na minha cama e ficava ‘meu deus, o que eu estou fazendo? Porque eu estou fazendo isso?’”, relata a jovem. 

Júlia conta que começou a produzir conteúdo sensual na internet, principalmente, como uma forma de empoderamento. “Eu criei um personagem de que ‘não gente, sou super empoderada, Only Fans tá me ajudando muito com meu corpo’”, comenta. No entanto, a jovem se deparou com um lado assustador do mundo pornográfico que não esperava. Muitos comentários eram cruéis e até criminosos - mensagens com conteúdo de pedofilia e racista. “Nossa você parece muito com a minha filha, por isso eu assinei” ou “para uma mestiça, até que você não é tão feia” foram algumas das coisas que, infelizmente, Júlia precisou ler.

“Começou a criar um complexo na minha cabeça de que eu não conseguia mais me olhar no espelho, levantar da cama, não conseguia falar com a minha família. Eu tinha vergonha de tirar foto e, na minha cabeça, eu ficava achando que eu merecia isso, mesmo sabendo que ia ser ruim, eu não sabia que ia ser tão obscuro assim”, confessa a jovem. 

Acuada e com medo, ela acabou usando as redes sociais para desabafar. Foi por meio de uma thread publicada no Twitter que Júlia chamou a atenção de muitas pessoas. O texto escrito por ela tinha um único objetivo: alertar outras meninas sobre a realidade da exposição no site.

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Em pouco tempo as publicações viralizaram e muita gente apareceu para prestar apoio. As mensagens vinham de todos os cantos do Brasil. Por algumas horas a Júlia sentiu o conforto da solidariedade de pessoas que ela nem conhecia.

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 Mas o grande alcance dos tuítes iria trazer mais sofrimento para a jovem. Parte dos internautas usaram o espaço para fazer ataques a ela. As notificações do celular não paravam, ela conta que a cada vez que a tela do seu celular brilhava, sentia dor de barriga de imaginar a repercussão das publicações. E o pior: muitas agressões vieram de mulheres que são criadoras de conteúdo sensual. 

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Todo esse bombardeio foi pesado demais. A estudante contou que o racismo, indícios de pedofilia e os xingamentos fizeram com que ela buscasse acompanhamento psicológico.  “Isso me machuca bastante, só que é uma coisa que eu tô tendo que levar pra não deixar me abalar mental e emocionalmente. Agora já foi, já fiz, não tem como voltar atrás”, finaliza. Voltar atrás realmente não é mais possível, mas Júlia tenta agora iniciar um novo momento. Para que isso aconteça, ela precisa esquecer essa parte da vida que tanto a machucou.

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MUDOU?
PRA PIOR OU PRA MELHOR?

 

Profissão que fascina, que incomoda, que esclarece. Falar sobre prostituição não é incitar a vulgaridade. É expor a nós mesmos, nossos vícios, nossas dores, medos e desejos. Maria, Cléo, Dani e Júlia podem ter começado de formas distintas, mas, cedo ou tarde, todas chegaram à mesma conclusão: não importa a pandemia, a crise, o virtual ou o offline. A esquina, o cabaré ou a câmera sempre vai estar lá tanto para quem quer quanto para quem precisa.
Mas afinal, o mercado da prostituição mudou com a chegada da Covid-19? Para Pedro e Fábio, empreendedores que viram seus negócios alavancarem com o isolamento social, o futuro das garotas e garotos de programa é digital, independente e mais seguro – fisicamente, pelo menos. Assédio, agressões físicas, racismo e machismo são alguns riscos que sempre estarão à espreita de quem coloca o corpo à venda. Ainda mais agora, onde jovens buscam glamour e excessos pela tela do smartphone, mas acabam encontrando coisas muito mais sujas do que o dinheiro.

Produção: Hub Jornalismo ESPM
Edição e Reportagem: Ana Weber, Fernanda Grapiglia, Henrique Pizzatto, Isabel Tavares, Juliana Farinati, Luiza Schirmer, Melany Vidal, Rafaela Hartmann e Weverton Kamphorst.
Professores orientadores: Adriana Kurtz, Leandro Olegário e Matheus Felipe.

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